Por
Salvador Nogueira
Atualizado em
11/09/2015
Remédio e veneno
Os laboratórios produziram incontáveis casos de sucesso em tratamentos médicos. Mas também mataram. E muito.
O século 20 testemunhou alguns dos experimentos
médico-científicos mais brutais e antiéticos já realizados em toda a
história, a maior parte deles voltada para o aperfeiçoamento das
técnicas de guerra. Mas é impossível separar completamente essas
pesquisas macabras das que foram conduzidas no âmbito do aprimoramento
da saúde. E existem duas razões para isso.
A primeira é que os métodos empregados pela indústria
farmacêutica, durante o mesmo período, não foram realmente diferentes.
Em Auschwitz, durante a Segunda Guerra, a farmacêutica alemã Bayer,
então parte da empresa IG Farben, usou prisioneiros não só como escravos
para trabalhos forçados em suas fábricas, mas também como cobaias para o
teste de medicamentos (muitas vezes, com resultados fatais). E nos
Estados Unidos, os testes de medicamentos em prisões foram mantidos
durante décadas após o fim da Segunda Guerra Mundial. Até 1974,
estima-se que cerca de três quartos de todas as drogas aprovadas para
uso em solo americano tenham passado por testes clínicos com
prisioneiros. Não era como na Alemanha nazista, claro - os presos usados
nos estudos eram voluntários e em geral remunerados. Mas, ainda assim,
havia uma controvérsia ética: prisioneiros podem de fato tomar uma
decisão consciente e independente, sem serem coagidos? Ou muitos
aceitaram participar, a despeito dos riscos, por medo de represálias?
Hoje nenhum país ocidental conduz testes em prisões. Mas até os anos
1970 isso foi comum nos Estados Unidos.
E o segundo motivo é que muitas vezes os estudos civis e
militares caminhavam de mãos dadas. Você consegue imaginar algo mais
cruel e absurdo do que o teste de armas químicas, como gás mostarda, em
voluntários humanos? Pois é, mas foi graças a isso que nasceu o que
ainda hoje é uma das principais armas contra o câncer: a quimioterapia.
O teste clínico pioneiro foi feito por dois
farmacologistas da Escola de Medicina de Yale, nos Estados Unidos: Louis
Goodman e Alfred Gilman. A pesquisa foi financiada pelo Departamento de
Defesa americano, que desejava investigar potenciais aplicações
terapêuticas de armas químicas - talvez para justificar seu contínuo
desenvolvimento. A substância a ser estudada? Gás mostarda. Goodman e
Gilman notaram que ele era muito volátil para ser usado em -experimentos
e produziram uma versão alternativa, trocando enxofre por nitrogênio,
produzindo uma versão nitrogenada.
Após testes em coelhos e camundongos mostrarem que a
substância era capaz de reduzir - mas não curar inteiramente - tumores,
prolongando a vida dos animais, eles decidiram testar em um humano, até
hoje conhecido apenas pelas iniciais: JD. Vitimado por linfossarcoma e
desenganado pelos tratamentos com radioterapia feitos ao longo do ano
anterior, ele recebeu, em 27 de agosto de 1942, a primeira de dez doses
diárias do gás mostarda nitrogenado, então identificado apenas como
substância X. A exemplo do que aconteceu com os animais, os tumores não
sumiram, mas diminuíram, melhorando sua qualidade de vida
momentaneamente. JD morreu em 1º de dezembro daquele ano, depois de um
inestimável préstimo à medicina moderna. Ainda hoje mostardas
nitrogenadas estão entre os agentes quimioterápicos mais usados.
Isso mostra como muitos dos nossos sucessos médicos estão
escorados em bases morais e éticas pouco sólidas. Não fosse a pesquisa
militar com gás mostarda, teríamos sido privados de um dos mais
importantes tratamentos contra uma das doenças mais devastadoras
conhecidas pela humanidade. O que, obviamente, não pode servir como
justificativa. Os fins não podem jamais justificar os meios. Apesar de
todo mundo concordar com isso, a adoção de mecanismos para inibir
violações em pesquisa e desenvolvimento de novas drogas - trabalho que
forma a base da indústria farmacêutica - evoluiu lentamente. Um dos
casos que impulsionou a necessidade de um controle maior foi o famoso
episódio da talidomida.
Essa substância foi originalmente desenvolvida na Alemanha
Ocidental e entrou no mercado local em 1957, prescrita como sedativo, e
se tornou um enorme desastre na Europa. Comercializada em massa para
gestantes - que costumam ter dificuldade para dormir -, ela produzia
teratogênese (problemas diversos de desenvolvimento, que podem incluir
malformações, restrição de crescimento ou retardo mental) em fetos. Mas
de 10 mil crianças em 46 países foram afetadas e apenas cerca de metade
delas sobreviveram.
Apesar desses relatos assustadores, a empresa farmacêutica
americana Richardson-Merrell ainda estava tentando liberar a droga nos
Estados Unidos no início dos anos 1960 - e para uso como tratamento de
náusea durante a gravidez. Buscando o apoio de médicos, ela realizou um
teste clínico não controlado, distribuindo 2,5 milhões de tabletes de
talidomida para mais de 1.200 profissionais de saúde no país, com a
indicação de que "não precisavam reportar resultados se não quisessem". A
iniciativa foi conduzida sob o controle do departamento de marketing da
companhia.
Em 1961, um dos médicos que participou desse teste não
controlado, Roy Nulsen, publicou um artigo no American Journal of
Obstetrics and Gynecology afirmando que a talidomida era segura, efetiva
e adequada como droga antináusea para mulheres nos estágios finais da
gravidez. O texto na verdade havia sido produzido pelo diretor médico da
Richardson-Merrell, Raymond Pogge, com a ajuda de sua secretária.
Nulsen só concordou em assiná-lo, e depois confessou que nunca sequer
manteve qualquer controle sobre a quem distribuiu as pílulas.
Apesar de todos os esforços da empresa, a talidomida não
foi liberada nos Estados Unidos. E foi esse o episódio que iniciou um
movimento de crescente rigidez no controle de medicamentos naquele país.
A partir de 1962, todas as drogas precisariam de aprovação expressa da
FDA (Food and Drug Administration, agência que regula fármacos e
alimentos), e o órgão por sua vez exigiria das companhias provas tanto
de sua segurança como de sua eficácia. Foi basicamente o momento em que a
indústria farmacêutica precisa realmente começar a levar a sério seus
testes clínicos.
Todo estudo clínico de uma nova droga precisa passar por
quatro ou cinco fases, numeradas de 0 a 4. E antes que se chegue lá,
estudos pré-clínicos, feitos em culturas de laboratório e em animais (in
vitro e in vivo, respectivamente), precisam ter demonstrado que a
substância pode realmente produzir alguns dos efeitos ambicionados. Só
aí começa o estudo com humanos.
A fase 0 envolve no máximo 10 voluntários, para verificar
- a partir de pequenas dosagens - as reações que a substância produz no
organismo. Serve basicamente para ver o que a droga faz e como e quando
ela sai do corpo. Essa etapa não costuma ser feita hoje em dia. Os
estudos geralmente começam na fase 1, a primeira realmente obrigatória a
envolver humanos. Ela envolve entre 20 e 100 voluntários, e seu
objetivo é unicamente testar a segurança do medicamento: verificar que
ele pode ser tomado por indivíduos saudáveis em doses variáveis sem que
isso cause efeitos intoleráveis ao organismo.
Na fase 2, o número de voluntários cresce e fica entre 100
e 300. Agora o objetivo é verificar se, além de segura, a droga é
eficaz (funciona diretamente para combater a doença) ou eficiente
(altera de algum modo o padrão clínico do paciente), dependendo do
objetivo preestabelecido. Então chegamos à fase crucial, a de número 3.
Em escala maior, ela envolve geralmente entre 1 e 2 mil pacientes e é a
primeira etapa que combina a ação de pesquisadores com médicos - será,
com efeito, a primeira tentativa, ainda experimental, de tratar
pacientes com o novo medicamento. Muitas vezes os resultados da nova
droga são comparados aos obtidos por outros medicamentos já existentes
no mercado. É a hora da verdade para o novo remédio.
Por fim, a fase 4 é o acompanhamento que se faz após a
entrada da droga no mercado. O laboratório farmacêutico recebe
autorização para comercializar o novo remédio, e aí todos os pacientes
que fizerem uso dele se tornam, potencialmente, cobaias para que se
possa avaliar os efeitos de longo prazo de seu uso, em tese
indetectáveis nas fases anteriores.
Para esses testes clínicos, usa-se em geral o procedimento
duplo-cego, em que os voluntários são divididos entre dois grupos, e
enquanto um toma um placebo (uma substância inócua, só para causar a
impressão psicológica de estar sendo tratado) ou um medicamento já
aprovado, o outro testa a nova droga. Nem os pesquisadores, nem os
pacientes sabem quem está tomando o que, e por isso o estudo é chamado
de "duplo-cego" - a ideia é evitar que qualquer viés recaia sobre os
resultados. Parece ótimo, não?
Pois é, mas o diabo está nos detalhes. Em como são
realizados esses estudos. Nos Estados Unidos, como vimos, até a década
de 1970, eles costumavam ser feitos em prisioneiros - sobretudo os teste
de fase 1, que pedem indivíduos saudáveis. Depois, foram transferidos a
hospitais universitários e clínicas com vínculos acadêmicos,
controladas por pesquisadores. Mas a partir dos anos 1990, a pressão
para que os estudos avançassem mais depressa e a crescente complexidade
dos experimentos envolvidos fez com que uma indústria paralela de
testes, controlada pelas empresas farmacêuticas, emergisse. Nos Estados
Unidos, em 1991, 80% dos estudos de novas drogas eram conduzidos por
centros de saúde acadêmicos. Isso mudou completamente. Em 2004, 70% dos
testes estavam a cargo de empresas terceirizadas.
Um problema é que os pesquisadores que realizam esses
estudos em companhias privadas não têm nenhum tipo de ambição acadêmica
- eles não irão se destacar pelos resultados obtidos e nem mesmo pelo
protocolo de testes, que foi desenvolvido pela indústria e será
meramente executado por eles. Não há, em essência, uma reputação
científica pessoal a ser protegida. A única motivação desses
funcionários - e das companhias que os contratam - é fazer seu cliente
feliz. E as gigantes farmacêuticas ficam felizes quando seus
medicamentos vão bem.
Outro problema é que esse esquema criou um ambiente para o
aparecimento das cobaias profissionais - pessoas que decidem viver de
participar em testes clínicos de fase 1. "Como esses estudos requerem
uma quantidade significativa de tempo numa unidade de pesquisa, os
voluntários usuais são pessoas que precisam de dinheiro e têm muito
tempo livre: os desempregados, os estudantes universitários,
trabalhadores temporários, ex-presidiários ou jovens que decidiram que
testar drogas é melhor do que bater cartão com os escravos
assalariados", relata o médico e filósofo americano Carl Elliott,
bioeticista da Universidade do Minnesota e crítico ferrenho dos meandros
da indústria farmacêutica. "Em algumas cidades, como Filadélfia e
Austin, a economia dos testes clínicos produziu uma comunidade de
voluntários semiprofissionais, que participam de estudos um após o
outro."
Um aspecto particularmente perverso desse sistema de
"profissionalização" de cobaias é que ele permite a exploração de grupos
marginalizados. Quer um exemplo?
Em 1996, a farmacêutica Eli Lilly se viu em maus lençóis,
quando o Wall Street Journal revelou que, havia pelo menos duas décadas,
a empresa estava pagando a alcoólatras moradores de rua para que eles
fossem cobaias em sua clínica de fase 1 em Indianápolis. (A Lilly é uma
das poucas que realiza diretamente seus estudos, desde 1926, sem fazer
uso de empresas terceirizadas ou laboratórios acadêmicos.)
Questionados pelo jornal, executivos da companhia tiveram a
coragem de dizer que os voluntários eram motivados pelo altruísmo para
participar dos testes clínicos. "Esses indivíduos querem ajudar a
sociedade", disse Dwight McKinney, médico e diretor executivo de
farmacologia clínica. Já alguns dos voluntários participantes contavam
outra história. "A única razão pela qual eu vim aqui é para fazer um
estudo para que eu possa comprar um carro e um novo par de sapatos",
disse um ex-viciado em crack de 23 anos que ficou sabendo da clínica nas
ruas. "Eu compro uma caixa de [cerveja] Miller e uma acompanhante e
faço sexo", outro voluntário relatou. ?A garota vai me custar US$ 200 por hora."
E, como você pode imaginar, esses voluntários recebiam
menos pelos testes do que a média do mercado. Após o escândalo, a Eli
Lilly parou de recrutar gente que não tenha comprovante de residência.
Mas não aposte que a solução usual será a de melhorar as condições dos
testes. Oprimida pelo governo de um país, a indústria procurará refúgio
em outros. Com efeito, um levantamento mostra que, em 2005, 40% de todos
os testes clínicos financiados pela indústria farmacêutica estavam
acontecendo em países emergentes. Entre 1995 e 2006, os maiores aumentos
anuais no número de pesquisadores realizando testes clínicos
aconteceram na Rússia, na Índia, na Argentina, na Polônia, na China e no
Brasil. E não pense você que os padrões éticos melhoraram muito. Um
caso particularmente chocante aconteceu em 1996, na África.
A farmacêutica Pfizer estava desenvolvendo um novo
antibiótico, chamado Trovan (trovafloxacin), que já havia se mostrado
promissor contra uma gama ampla de infecções e que podia ser ministrado
por via oral, em vez de injeção. Quando uma epidemia de meningite
apareceu na Nigéria, uma equipe da companhia viu a oportunidade ideal
para a realização de um teste de campo. Duzentas crianças doentes foram
recrutadas, e metade recebeu Trovan, enquanto a outra metade -recebeu
ceftriaxone, uma droga já estabelecida no tratamento de meningite. Ao
final do teste, muitas crianças ficaram com sequelas deixadas pela
doença, e 11 delas morreram - cinco que haviam tomado Trovan e seis que
tomaram ceftriaxone. Ponto para o novo medicamento, certo?
Não exatamente. Primeiro que houve uma violação ética
- nem os pais, nem as crianças foram informadas de que um experimento
estava em andamento. Todos imaginavam que se tratasse apenas de ajuda
humanitária. Segundo que, em nome do estudo, crianças cuja saúde estava
se deteriorando a olhos vistos não tiveram a medicação trocada. E o
pior: as crianças do grupo controle, que receberam ceftriaxone, tomaram a
droga em doses menores do que as adequadas - presumivelmente para
garantir o melhor resultado do Trovan. O caso terminou na Justiça e, num
acordo para encerrar o processo, a Pfizer pagou US$ 75 milhões. Mas que
ciência é essa?
Trata-se de um caso claro de fraude (além de
desumanidade), em que o experimento é manipulado para produzir o
resultado desejado - e vidas são perdidas por isso.
Mas, ainda que não fosse, ele teria grande chance de
produzir resultados não confiáveis. E esse é outro grande segredo da
indústria farmacêutica - ela explora o fato de que testes clínicos podem
essencialmente provar qualquer coisa que se queira.
Basta seguir por algum tempo o noticiário de saúde para
perceber que conflitos de resultados vindos de pesquisas diferentes são
muito comuns. Num dia, comer ovo ajuda o coração; no dia seguinte,
aumenta o risco de infarto. Aspirina um dia ajuda a mitigar o avanço do
mal de Alzheimer; no outro, não tem efeito detectável no progresso da
doença. E por aí vai. Como pode ser assim? Talvez os estudos tenham
usado poucos voluntários, diminuindo sua confiabilidade, ou talvez o
protocolo de investigação não tenha sido o mais adequado. Ou talvez
ninguém tenha culpa pela contradição. Pois, ao que parece, é assim que a
ciência funciona - ou não funciona, às vezes.
Quem pegou esse esqueleto e tirou do armário foi John
Ioannidis, um epidemiologista da Universidade Tufts, em Boston, e da
Universidade de Ioannina, na Grécia. Em 2005, ele publicou no importante
periódico PLoS Medicine um artigo com um título chocante: "Por que a
maioria das descobertas de pesquisas publicadas é falsa". O que o
pesquisador fez foi demonstrar, por meio de simulações e cálculos
matemáticos, que as conclusões obtidas com números hoje presumidos como
suficientes para a extração de uma correlação estatística real, na
verdade, possuem, dentro de si, uma probabilidade altíssima de ser
apenas um "acidente" de contabilidade. Em suma, a maioria das pesquisas
obtidas por essa rota mais provavelmente apresenta resultados falsos que
verdadeiros.
É o problema de trabalhar por correlação, em vez de
causação - algo que é extremamente comum nas ciências biomédicas. Os
pesquisadores analisam seus voluntários e tentam estabelecer
"coincidências" entre dois fatos díspares - por exemplo, comer mais ovo e
ter mais problema cardíaco. Se encontram algum paralelo estatístico
que, no jargão, possa ser considerado "significativo", apresentam a
potencial descoberta. Isso mesmo que não façam a mais vaga ideia de como
ovo possa influenciar ou não o funcionamento do coração.
Não é à toa que ficamos malucos tentando entender os
resultados de pesquisas que tentam investigar o impacto de hábitos
alimentares e comportamentais na saúde. "Alguns dos estudos mais citados
na pesquisa biomédica foram refutados alguns anos depois de sua
publicação", diz o epidemiologista. "Por exemplo, pesquisas no início
dos anos 1990 diziam que vitamina E podia reduzir pela metade acidentes
cardiovasculares, tanto em homens como em mulheres. Hoje, sabemos que
suplementos de vitamina E não ajudam, e em altas doses podem até
aumentar a mortalidade. Outros estudos muito citados diziam que terapia
de reposição hormonal era cardioprotetora. Grandes testes subsequentes
mostraram que, em média, ela aumenta o risco de eventos
cardiovasculares. Dez anos atrás, tudo que vinha da epidemiologia
nutricional sugeria que conhecíamos dezenas de fatores de risco
nutricionais para câncer e formas de reduzir o risco da doença ao
melhorarmos a nutrição. Numa revisão recente, muito pouco disso acabou
sobrando."
Em muitos casos, as pesquisas apresentam conclusões
erradas porque foram, para explicar tudo em uma só palavra, malfeitas.
Se o estudo tem um número muito pequeno de voluntários, ou se não foi
possível descartar outras explicações que dessem conta do mesmo fenômeno
observado, é bem provável que a conclusão seja mesmo falsa. E a coisa
só piora quando entra o fato de que os cientistas são humanos e precisam
fazer descobertas significativas para manter o financiamento às suas
linhas de pesquisa. Aí começa a surgir um viés. O pesquisador, ainda que
se esforce para eliminar qualquer postura tendenciosa e produzir
resultados de qualidade, acaba sutilmente desenvolvendo o experimento de
forma a confirmar sua tese. Isso quando não redige seus resultados da
forma mais espalhafatosa possível, a fim de produzir mais impacto.
Sim, isso acontece. Um estudo conduzido por Kimihiko
Tamagishi, da Universidade Shukutoku, no Japão, mostrou que nem sempre
as pessoas entendem o que os números querem dizer. Ao apresentar sob
formas diferentes uma mesma estatística, ele notou que as pessoas não
costumam raciocinar adequadamente sobre números. Então, se o risco de
morte ocasionado por um câncer leva ao óbito 1.286 em cada 10 mil
pessoas, ou 24,14 em cada 100, a maioria das pessoas tende naturalmente a
achar que a primeira estatística é mais ameaçadora que a segunda, muito
embora seja menor (equivale a 12,86%, contra 24,14% da segunda).
Claro, os próprios cientistas, acostumados a números, não
caem facilmente nesses truques. Mas eles sabem que, ao redigir seus
estudos de forma a torná-los mais enfáticos, ou assustadores, ajuda na
hora de ser publicado nos periódicos científicos e, mais tarde, virarem
reportagens de jornal. Um exemplo clássico é o de um estudo mostrando
que comer bacon aumenta em 20% a chance de alguém ter câncer no
intestino. Parece um número assustador, não? Mas o que ele realmente
quer dizer? Não sabemos até tomarmos conhecimento da probabilidade de
uma pessoa qualquer ter a mesma doença. Aí descobrimos que esse risco é
de 5%. Ou seja, na realidade, comer bacon faz com que o risco, que era
de 5%, suba para 6%. Aí já não assusta tanto, certo?
O drama é que, segundo Ioannidis, mesmo quando tiramos de
cena as pesquisas ruins e os malabarismos matemáticos, ainda assim vamos
tropeçar em muitas pesquisas que chegam a conclusões falsas. Muitas
vezes o que parece uma correlação clara entre causa e efeito é apenas
uma infeliz coincidência na amostra de voluntários analisada pelo
pesquisador.
E, para que se tenha uma ideia de como as coisas são
complicadas, só o fato de que há muita gente pesquisando a mesma coisa,
em vez de uns poucos grupos, pode levar à produção de mais resultados
falsos (pelo simples fato de que cada um desses estudos terá suas
idiossincrasias próprias, que farão com que a realidade escape por entre
os dedos, e muitos deles estarão calcados em técnicas estatísticas que
podem "enxergar" correlações onde elas na verdade não existem).
Eis que a ciência não é aquele joguinho da verdade que
todos gostaríamos que fosse. É apenas uma forma humana de produção de
conhecimento, com seu próprio conjunto de regras e, com elas, suas
próprias mazelas. É fato que, no fim das contas, a verdade acaba
prevalecendo, e os avanços passam a ser inegáveis. Atualmente, sabemos
mais sobre tudo do que sabíamos alguns anos, para não dizer décadas e
séculos, atrás. Mas, quando os cientistas estão apenas no meio do
caminho para confirmar ou refutar uma hipótese, o processo é muito mais
tortuoso e perigoso do que eles mesmos gostariam de admitir.
"Muitos cientistas, de campos bastante diversos, têm me
procurado nos últimos anos para dizer que eles identificam os mesmos
problemas, ou até algo pior, acontecendo em seus ramos", disse-me
Ioannidis, quando conversei com ele em 2011. De lá para cá, a situação
não mudou muito.
Um levantamento publicado na PLoS Biology em junho de 2015
e liderado por Leonard P. Freedman, do Instituto Global de Padrões
Biológicos, em Washington, indica o possível tamanho do problema para
pesquisas biomédicas: aproximadamente 50% dos resultados pré-clínicos
(ou seja, feitos somente em laboratório e com animais) obtidos nos
Estados Unidos não conseguem ser reproduzidos por outros pesquisadores, o
que equivale a um investimento anual de US$ 28 bilhões em pesquisas que
provavelmente geraram conclusões falsas. É um caminhão de dinheiro.
E não há por que não acreditar que o "efeito
Ioannnidis" não reverbere quando saltamos das fases pré-clínicas para os
estudos clínicos. Como sempre, a indústria farmacêutica só tem a ganhar
com isso. Mesmo sem cometerem fraude, pesquisadores podem produzir
pesquisas que validem um novo medicamento e indiquem, por exemplo, que
ele é um pouquinho melhor que os antigos. Depois, esse resultado pode
acabar não sendo verdadeiro. Mas, uma vez publicado, ele tem uma "vida
útil" até ser superado ou negado por estudos posteriores. E isso pode
garantir o sucesso comercial da nova droga - que, a propósito, precisa
ser obtido rapidamente, antes que expire o prazo da patente e seja
liberada a fabricação de versões genéricas, por outros laboratórios,
daquele remédio.
A forma como os médicos contornam o desafio de navegar
entre os muitos resultados contraditórios que se acumulam na literatura é
se fiar nos chamados artigos de revisão - trabalhos publicados pelos
maiores especialistas de uma determinada área que buscam avaliar
criteriosamente o conjunto de pesquisas produzidas e separar, por assim
dizer, o joio do trigo. Mas, como numa corrida armamentista, assim que
aparece uma solução que pode atrapalhar a indústria farmacêutica, ela
reage com uma nova estratégia para neutralizá-la.
Um dos segredinhos mais mal guardados é a forma que a
indústria usa para influenciar a comunidade médica - a preparação de
artigos de revisão discretamente enviesados para publicação em revistas
científicas de renome. Obviamente, esse material seria recebido com
desconfiança se viesse assinado por algum pesquisador ou médico
diretamente ligado a alguma companhia farmacêutica. A solução? Encontrar
alguém "honesto", supostamente sem interesse comercial, para assinar o
material.
A tática é mais velha que andar para a frente. Já falamos
de um episódio desses ocorrido em 1961, quando a Richardson-Merrell
tentou liberar a talidomida para venda nos Estados Unidos. Ainda assim,
até hoje é um dos maiores problemas encontrados na literatura médica,
que deixa os profissionais de medicina que querem simplesmente encontrar
as melhores soluções farmacológicas para seus pacientes literalmente no
escuro.
Meu encontro particular com a prática dos "escritores
fantasmas", ou seja, que produzem os artigos para atender aos desígnios
da indústria farmacêutica, mas não os assinam - aconteceu em 2005, ao
conversar com a médica e pesquisadora Adriane Fugh-Berman, da
Universidade Georgetown, em Washington. Em meados do ano anterior, ela
havia sido contatada por uma empresa de comunicação médica vinculada a
uma companhia farmacêutica, com uma proposta.
A dita companhia propôs que ela assinasse um artigo de
revisão sobre a interação de ervas com warfarin, um famoso
anticoagulante com uma longa história nos Estados Unidos, o único de uso
oral aprovado pela FDA. A proposta, feita por e-mail, dizia
explicitamente que o estudo havia sido financiado por uma companhia
farmacêutica, que não tinha nenhuma droga no mercado concorrente do
warfarin, nem nenhum produto derivado de ervas. Intrigada, Fugh-Berman
pediu mais informações. Poucos meses depois, em 24 de agosto, ela voltou
a ser contatada. A empresa de comunicação havia enviado um rascunho do
estudo, já assinado por ela, para que ela fizesse as modificações que
achasse necessárias, de preferência até o dia 1º de setembro. Sobre o
interesse da farmacêutica pelo estudo, a empresa de comunicação disse a
Fugh-Berman: "Embora não haja promoção de nenhuma droga nesse estudo, a
companhia quer preparar o palco para novos anticoagulantes que não estão
sujeitos às numerosas limitações do warfarin".
A pesquisadora da Georgetown não aceitou ceder seu nome
para a publicação da pesquisa. Aliás, a essa altura, você deve estar se
perguntando - por que alguém, em sã consciência, aceitaria isso? A
primeira motivação pode ser a mais velha de todas: grana. Pesquisadores
podem ser, digamos, encorajados financeiramente a colaborar. É
importante lembrar que os tentáculos econômicos da indústria
farmacêutica hoje se encontram firmemente agarrados a boa parte da
comunidade médica e científica. A indústria financia pesquisas, dá
amostras grátis de medicamentos, oferece viagens, contrata palestras,
paga cursos e trata muitos médicos como virtuais parceiros de negócios. E
aceitar agrados da indústria é uma prática em geral disseminada entre
os médicos, embora todos digam que isso jamais os influenciaria nas
prescrições ou nos tratamentos. Certo.
O outro motivo que pode justificar a participação nesses
esquemas é manter sua respeitabilidade no meio acadêmico sem fazer
esforço. A indústria contrata o artigo, uma empresa de comunicação
terceirizada prepara todo o material e ao belezoca especialista só cabe
assinar, talvez fazendo uma ou duas alterações cosméticas, e lá está seu
nominho, todo pimpão, em mais um trabalho publicado num periódico
respeitável.
Em todas as áreas da ciência - não só na medicina - muitos
pesquisadores vivem sob a pressão do adágio "publish-or-perish":
"publique ou pereça". A chance de publicar sem precisar perder tempo
para pesquisar ou escrever pode, por vezes, parecer atraente demais para
resistir. Ainda mais num caso como o relatado por Fugh-Berman, em que
ela não precisaria contar nenhuma grande mentira no artigo, meramente
enfatizar a precária situação atual do mercado para que a
"solução" miraculosa apareça na indústria ali adiante.
De toda forma, ela preferiu não aceitar - ainda bem - e a
história teria provavelmente morrido aí, não fosse por uma coincidência.
Outro cientista mais permissivo foi encontrado pela empresa para
assinar o estudo. O trabalho, então, foi submetido para publicação no
Journal of General Internal Medicine, revista científica americana com
"peer-review": sistema em que outros cientistas, independentes, são
chamados a avaliar o conteúdo dos trabalhos antes da publicação. E, por
coincidência, Fugh-Berman foi chamada a avaliar o artigo. "Era uma
versão revisada, mas reconhecível, do manuscrito que havia sido enviado a
mim", -
disse Fugh-Berman, que então contou aos editores a história toda. "Ao
saber de suas estranhas origens, os editores rejeitaram o trabalho e
incentivaram uma discussão internacional sobre 'ghostwriting' por
empresas de comunicação entre os membros da Associação Mundial de
Editores Médicos, alertando-os para o fato de que estudos submetidos
podem não reconhecer apropriadamente financiamento de corporações e/ou
coautoria."
Fugh-Berman então escreveu um artigo sobre o assunto,
publicado no mesmo Journal of General Internal Medicine. Mas os editores
alteraram o manuscrito, com autorização dela, para omitir os nomes das
companhias envolvidas no caso, supostamente porque seu objetivo não era
fazer uma denúncia, mas abrir um debate. (A relação entre periódicos
científicos e a indústria farmacêutica é ainda mais complicada que a dos
médicos - a imensa maioria das peças publicitárias publicadas nessas
revistas vem das grandes companhias. Que journal gostaria de perder
anunciantes, e dinheiro, por conta de uma briguinha sobre escritores
fantasmas?)
Embora tenha ocultado os protagonistas do caso, o Journal
of General Internal Medicine teve o mérito de expor a questão. Afinal de
contas, a estratégia usada pelas farmacêuticas solapa a confiabilidade
que se pode ter em resultados, mesmo quando publicados por revistas com
"peer-review". Usando um pesquisador "imparcial e independente" como
autor, as empresas evitam a obrigatoriedade imposta por muitas
publicações científicas de declarar interesses financeiros ligados à
pesquisa. Periódicos que se consideram sérios não podem gostar disso. O
Journal of General Internal Medicine não gostou. "Nesta edição,
Fugh-Berman descreve um caso grosseiro de comportamento antiético por um
autor, um fabricante farmacêutico e uma companhia de educação médica",
disse a revista em seu editorial.
Em resposta ao caso, o JGIM decidiu endurecer sua política
editorial, determinando que qualquer pessoa ou companhia que teve
influência no texto ou no conteúdo de um artigo deve ser identificada. E
a Associação Mundial de Editores Médicos ampliou seu foco para cobrar
não só a responsabilidade dos autores, mas as dos que encomendam esses
artigos e as empresas que os redigem e arregimentam os escritores
fantasmas.
Quanto a Fugh-Berman, quando conversou comigo, ela não
refugou e entregou os nomes das empresas envolvidas no caso, que
publiquei em uma reportagem no jornal Folha de S. Paulo. A empresa de
comunicação médica era a Mx Communications, e a companhia farmacêutica
era a AstraZeneca, ambas do Reino Unido. "Duvido que eu seja convidada
novamente para ser uma autora de mentirinha, mas certamente há outros
médicos que estariam dispostos a propagandear essas enganações", disse.
No fim, o novo anticoagulante da AstraZeneca ganhou aprovação para
alguns casos na França, mas foi vetado para uso nos Estados Unidos.
Veja a seguir trechos da iluminadora conversa que tive com Fugh-Berman na ocasião.
Por que pesquisadores aceitam ser "escritores fantasmas"?
Neste caso, nenhum dinheiro foi oferecido. Então eu
suponho que há quem faça pelo crédito acadêmico. Mas outros foram pagos
para isso, algumas vezes milhares de dólares.
Casos como o seu são muito frequentes?
Sim, é bem comum. Muitos colegas foram convidados para
isso. Eu fiquei chocada, depois de ver algumas correspondências da
Associação Mundial de Editores Médicos, que os editores tenham ficado
tão surpresos. Ninguém sabe quantos artigos escritos com autores falsos
existem na literatura.
Por que você decidiu revelar o caso? E por que outros que rejeitam ofertas não fizeram isso?
Eu realmente não pensei que isso fosse novidade. Quando eu
recebi o manuscrito forjado para avaliar, eu só queria que os editores
soubessem de suas origens e esperava que eles não o publicassem. Eu
pensei que era de conhecimento amplo o fato de que isso acontecia, com
muitas companhias e muitos autores, mas eu achei que pudesse ao menos
evitar que um deles fosse publicado. Fui encorajada pelos editores.
Você acha que sua postura poderá encorajar outros a pesquisadores a revelar o que está acontecendo?
Não. Os médicos invejam os que são pagos pelas companhias farmacêuticas.
A relação entre a medicina e a indústria farmacêutica é profunda,
complexa e nada saudável. Elas deveriam ser cirurgicamente separadas com
regulamentações. Empresas farmacêuticas não deveriam ter permissão para
financiar publicações ou seguir com atividades de educação médica.
O melhor exemplo da promiscuidade que existe no mundo dos
"escritores fantasmas" aconteceu no caso Fen-Phen, uma droga
antiobesidade comercializada pela companhia Wyeth nos anos 1990. Quando
os resultados clínicos começaram a mostrar problemas sérios produzidos
pela substância, como hipertensão pulmonar e doença da válvula cardíaca,
a resposta da empresa foi destruir os dados, ignorá-los e lançar um
contra-ataque via artigos fantasmagóricos.
"Os artigos escritos por fantasmas do Fen-Phen foram
produto de uma complexa estratégia multimilionária de relações
públicas", comenta o bioeticista americano Carl Elliott. "Em 1996, a
Wyeth contratou a Excerpta Medica, Inc., uma firma de comunicação médica
de New Jersey, para escrever dez artigos para periódicos médicos
promovendo tratamento para obesidade. A Wyeth pagou à Excerpta Medica
US$ 20 mil por artigo. Por sua vez, a Excerpta Medica pagou a
pesquisadores universitários proeminentes de US$ 1 mil a US$ 1,5 mil
para que eles editassem rascunhos de artigos e colocassem seus nomes no
produto publicado. A Excerpta Medica, um braço da editora acadêmica
Elsevier, controla ela mesma dois periódicos médicos: Clinical
Therapeutics e Current Therapeutic Research. De acordo com documentos do
tribunal, a Excerpta Medica planejava submeter a maioria desses artigos
a periódicos da Elsevier. No fim, a Excerpta só conseguiu publicar dois
deles antes que o Fen-Phen fosse retirado do mercado, em 1997. Um
apareceu no Clinical Therapeutics, o outro no American Journal of
Medicine, outro periódico da Elsevier. A Wyeth manteve todos os artigos
sob estrito controle, livrando os rascunhos de qualquer material com
potencial para prejudicar as vendas."
Em 2001, a Wyeth já reconhecia que pelo menos 450 mil
pacientes ficaram doentes pelo uso de Fen-Phen e pelo menos algumas
centenas deles morreram por conta disso. Em 2005, a companhia declarou
ter separado US$ 21,1 bilhões para pagamento de indenizações.
De todas as coisas perversas que o avanço da ciência
médica, movido pela indústria farmacêutica, gera, nenhuma delas apavora
mais do que a prática de inventar doenças inexistentes. Numa sociedade
cada vez mais obcecada com saúde e bem-estar, somos um prato cheio para
esse tipo de atitude, que transforma pequenas flutuações do rico e variado espectro humano em anormalidades a serem tratadas e combatidas.
Não é difícil entender como a coisa funciona. "Muitos de
nós temos uma visão simples, de senso comum, sobre o modo como o
desenvolvimento de drogas e sua comercialização funcionam", explica
Elliott. "As pessoas pegam doenças, cientistas desenvolvem drogas para
tratar essas doenças, e os comercializadores vendem as drogas ao mostrar
que elas funcionam melhor que as outras competidoras. Algumas vezes,
contudo, esse padrão funciona ao contrário. Os cientistas das empresas
farmacêuticas desenvolvem uma droga com uma gama de efeitos
fisiológicos, e nenhum deles é terrivelmente útil, então os
comercializadores precisam identificar e promover uma doença para que a
droga a trate. Isso pode significar cooptar uma doença rara, cujas
fronteiras podem ser expandidas para abranger mais pacientes, ou
redefinir um aspecto desagradável da vida comum como patologia médica.
Uma vez que uma doença atinge um grau crítico de legitimidade cultural,
não é preciso mais convencer ninguém de que uma droga é necessária."
Essa revelação explica muita coisa que vemos hoje na
própria imprensa a respeito de doenças. Em muitos casos, essa ação de
"repaginar" uma determinada situação em benefício da indústria
farmacêutica também é boa para seus potenciais clientes. Ao abordar
temas como incontinência urinária e disfunção erétil e tirar o estigma
dessas reais condições médicas, mostrando que não há nada que se
envergonhar e que elas podem ser tratadas de forma eficaz, não há dúvida
de que a indústria está prestando um grande serviço a todos nós.
Infelizmente nem sempre a coisa funciona assim. E as
coisas ficam ainda mais difusas quando partimos para as condições
psiquiátricas. "A criança bipolar, o adulto socialmente ansioso e o
estudante com transtorno de déficit de atenção com hiperatividade não
existiam 30 anos atrás, pelo menos não no seu sentido moderno", lembra
Elliott. "Eles apareceram em resposta a medicação."
Claro que podemos escrever um livro inteiro colocando em
lados opostos médicos que dão mais ou menos valor a esses novos rótulos
que emergem no campo da psiquiatria, e a ideia aqui não é especificar
quais dessas condições merecem reconhecimento e quais são puras
invenções. Mas o ponto não é esse. O que é particularmente digno de nota
é o fato de que esse "apuramento" nos diagnósticos anda de mãos dadas
com a indústria, e que precisamos encará-lo sempre com um olhar crítico e
desconfiado.
Se você for ao site da Associação Brasileira do Déficit de
Atenção, por exemplo, encontrará diversos artigos argumentando
veementemente que não se trata de uma doença inventada, escritos por
médicos respeitáveis e independentes ligados a universidades brasileiras
- no que eu acredito, até. Você também encontrará a informação de que
ela é subtratada no Brasil - outro "mantra" clássico da indústria de
medicamentos. Mas também verá que entre os patrocinadores e parceiros da
associação estão duas farmacêuticas, a Shire e a Novartis. A principal
droga no tratamento do transtorno é o metilfenidato, mais conhecido como
Ritalina, da Novartis.
De novo: não estou dizendo que esta ou aquela condição
médica não exista, apesar de todo o trabalho claro de "disease
branding" que a indústria faz em cima de diversas dessas doenças. O
problema na verdade é a falta, em muitos casos, de referências
confiáveis. A noção de que podemos nos fiar na ciência se quebra diante
de uma indústria multibilionária que não esconde o desejo de que tomemos
cada vez mais pílulas, independentemente de precisarmos delas ou não, e
que faz uso de recursos antiéticos, como a manipulação de pesquisas, o
suborno a médicos e a ameaça de cortar apoio financeiro a aqueles que
tenham a coragem de apontar problemas com novas drogas, como muitas
vezes já aconteceu.
Um caso emblemático de como a indústria farmacêutica pode
até mesmo contorcer sua razão de ser para maximizar lucros é o do
antidepressivo conhecido como Prozac (fluoxetina). Desenvolvido pela Eli
Lilly, ele foi lançado em meados dos anos 1980 como um avanço diante de
outros fármacos da mesma categoria, e chegou a ser promovido pela
fabricante como primeiro inibidor seletivo da recaptação da serotonina -
na verdade, era o quarto.
A serotonina é uma molécula que está envolvida na
comunicação entre os neurônios - um neurotransmissor -, e sua modulação
pode ajudar no tratamento de diversas doenças. De fato, o Prozac é um
medicamento eficaz para tratar quadros clínicos como depressão moderada a
grave, transtorno obsessivo-compulsivo e outras condições
psiquiátricas. Mas o sucesso da droga nos anos 1990 veio junto com um
entusiasmo intrigante por parte de alguns médicos. Muitos psiquiatras
começaram a reportar que medicamentos da classe do Prozac não ajudavam
apenas as pessoas que estavam clinicamente deprimidas. Eles também
pareciam apoiar pessoas com condições que, para todos os efeitos
práticos, não contavam como distúrbio mental. "O termo cunhado pelo
psiquiatra Peter Kramer, psicofarmacologia cosmética, foi o que pegou",
conta Carl Elliott. "Em seu livro Listening to Prozac, Kramer se
preocupava com as consequências de usar drogas psicoativas para fazer
pessoas saudáveis ficaram mais do que bem?. Deveriam médicos prescrever
drogas psicoativas que tornam as pessoas saudáveis mais felizes, mais
energéticas e mais expansivas?"
E essa não era toda a história. Em paralelo a esse
entusiasmo, alguns relatos sobre efeitos colaterais começaram a
aparecer. Em 1990, Martin Teicher, um psiquiatra da Universidade
Harvard, publicou um artigo no American Journal of Psychiatry apontando
seis casos de pacientes que começaram a ter pensamentos suicidas após
tomar Prozac. E logo começaram a surgir situações ainda mais graves, em
que pessoas influenciadas pela droga e sem histórico de violência
cometiam assassinatos e se suicidavam.
Processos contra a Eli Lilly
decorreram disso e especialistas independentes tiveram acesso aos
resultados dos testes clínicos do Prozac. E o que eles constataram é que
esses estudos eram manipulados pela indústria para mascarar, de todas
as formas possíveis, o risco envolvido no consumo de antidepressivos.
Mesmo esses especialistas reconhecem o valor de
medicamentos como o Prozac no tratamento de depressão clínica - mas com
todos os dados à disposição fica claro que a droga está longe de ser a
"pílula maravilhosa do bem-estar", a fábula que alguns médicos - sem
dúvida encorajados pela indústria - tentaram construir nos anos 1990.
E se engana quem pensa que essa manipulação de estudos se
restringe a campos mais acinzentados, como o da farmacologia
psiquiátrica. O mais escandaloso exemplo de fraude científica em nome do
lucro é o do Vioxx. Fabricado pela Merck e lançado em 1999, ele era um
anti-inflamatório que se tornou campeão de vendas no mundo todo. Mas
apenas um ano após seu lançamento começaram a aparecer relatos
preocupados de médicos que associavam o uso do medicamento a risco
aumentado de doença cardíaca.
Um grande estudo promovido pela própria Merck, chamado
Vigor, também revelava isso - um aumento de 500% no risco de ataques
cardíacos -, mas foi maquiado em sua apresentação ao público. Os
pesquisadores que tentassem, por sua vez, fazer algum barulho sobre os
perigos eram perseguidos de forma implacável pela companhia: suas
instituições de origem eram ameaçadas com corte de verbas de pesquisa,
caso o dito "tumultuador" não se calasse. Tudo isso foi devidamente
documentado, e veio à tona durante os inevitáveis processos judiciais
que apareceram por conta das mortes causadas pela droga - estimadas pelo
FDA em 2004, quando o medicamento foi retirado de circulação, em
aproximadamente 38 mil. A Merck acabou reservando quase US$ 5 bilhões para o pagamento de indenizações, só nos Estados Unidos.
Esses são os exemplos mais visíveis, mas estão longe de
ser únicos. Na verdade, os casos de medicamentos que entram e saem do
mercado deixando uma trilha de desgraças pelo caminho são recorrentes.
A ciência é o nosso único caminho viável para navegar com
alguma segurança nesse terreno escorregadio, e não vamos aqui fingir
que, no geral, a indústria farmacêutica não trouxe incríveis benefícios à
sociedade. Trouxe. Estamos melhor com ela do que sem ela. Vivemos mais e
melhor que nossos ancestrais e, com certeza, isso tem a ver com
melhorias proporcionadas pelo avanço do saber científico e das pesquisas
farmacológicas. Isso, contudo, não pode e não deve - se traduzir num
cheque em branco para indústria dos medicamentos. Não se pode acreditar
em tudo que tentam nos empurrar, sob a rubrica "estudos mostram que".