Pasquale Cipro Neto*
O sujeito sai do consultório com a receita nas mãos. Tenta entender os hieróglifos (ou "hieroglifos", tanto faz) do médico. Não obtém pleno êxito, mas pelo menos uma coisa lhe parece clara: "uso tópico", expressão que muitas vezes encabeça as recomendações do facultativo. Os mais novos talvez não saibam, mas o facultativo é o médico mesmo.
E lá vai o nosso paciente, intrigado com o "uso tópico". Que significa isso? "Tópico" vem do grego "tópos", radical que indica idéia de lugar e que aparece em alguns vocábulos de nossa língua: "topofobia" (medo mórbido de certos lugares), "topônimo" (nome de lugar - região, cidade, país etc.), "topografia" (descrição exata e minuciosa de um lugar) etc.
Pois bem, o uso é tópico porque é feito no lugar do corpo em que se manifesta o mal. Na prática, o uso tópico acaba significando "uso na pele", já que o medicamento é aplicado diretamente na pele que cobre a região do corpo em que está o mal que se quer curar. Sem saberem o que significa "uso tópico", muitas vezes é só na farmácia que os pacientes descobrem que o médico receitara uma pomada, um creme, um xampu, uma loção ou um sabonete.
Bem, voltemos ao nosso paciente, que na mesma receita encontra a prescrição de outro medicamento, agora com esta recomendação: "uso intramuscular". Aqui, nenhuma dúvida: o sujeito já sabe que vai ter de tomar uma injeção. O problema, agora, não é de compreensão; é de grafia mesmo. Não são poucos os médicos que escrevem "intramuscular" com hífen a separar o prefixo latino "intra" (que significa "dentro de", "no interior") do adjetivo "muscular". O prefixo "intra" só se agrega com hífen a palavras iniciadas por vogal, "h", "r" ou "s", como "intra-articular", "intra-uterino", "intra-ocular", "intra-hepático" etc. Nos demais casos, nada de hífen: "intramuscular", "intracartilaginoso", "intravascular", "intracraniano" etc. O correspondente grego de "intra" é "endo", que se encontra em "endocárdio", "endotraqueal", "endocrinologia" (de que faz parte o elemento grego "crino", que significa "separar", "distinguir", "discernir"), "endovenoso" etc.
A esta altura, talvez alguém esteja pensando que basta seguir o que se recomenda com "intra" para não errar mais no emprego do hífen com os outros prefixos, muitos dos quais são comuns na terminologia médica ("anti", "ultra", "auto", "semi", "inter" etc.). Não é bem assim; cada caso é um caso. Um bom exemplo é o prefixo grego "anti", que indica idéia de oposição. Com ele, só ocorre hífen se a palavra agregada começa com "h", "r", ou "s": "anti-hemorrágico", "anti-histamínico", "anti-retroviral", "anti-sifilítico", "anti-rábico". Nos demais casos, nada de hífen: "antiinflamatório" (com "ii", sem hífen), "antiinfeccioso" (também com "ii", sem hífen), "antiasmático", "antiemético", "antiepiléptico" etc.
E o nosso paciente? Está cercado de remédios por todos os lados. Acaba de constatar que o médico preencheu a frente e o verso da receita. Na última das recomendações, está presente a expressão "uso sub-cutâneo", grafada assim, com hífen. Eis outro prefixo que normalmente é atado ao radical com hifens desnecessários. "Sub" só se agrega com hífen a palavras iniciadas por "b" ou "r". Salvo engano, não há termos médicos que se enquadrem nesse caso. Nos demais, porém, não faltam exemplos, todos grafados sem hífen. Prepare-se, doutor: "submandibular", "subclavicular", "subclínico", "subcostal", "subepático" (sem "h"!), "subcapsular", "subluxação", "suboccipital", "subcutâneo", "subfebril".
Depois de tantos remédios, administrados de maneiras tão díspares, nosso caro paciente quer se curar, sem que isso se transforme em algo utópico. Utópico? Mas essa palavra nos lembra o início da receita, ou seja, o uso tópico. Santo Deus, lá vem remédio de novo? Não vem, não, embora as palavras "tópico" e "utópico" tenham tudo que ver uma com a outra. Na verdade, ao pé da letra, uma é o contrário da outra. O "u" de "utópico" nada mais é do que o prefixo negativo grego "ou", agregado pelo humanista inglês Thomas Morus ao radical grego "tópos" para criar a palavra "utopia", com a qual batizou, em 1516, uma ilha imaginária, cujo sistema sociopolítico era simplesmente o ideal. Ao pé da letra, "utopia" significa "nenhum lugar". Na prática, a utopia é o sonho, a fantasia, a realização do impossível, daquilo que não existe em nenhum lugar.
Pois é justamente por uma utopia que trabalham (ou deveriam trabalhar) os médicos e a medicina: a de uma sociedade sem doenças e sem doentes. Enquanto esse tempo utópico não chega, curamo-nos com medicamentos de uso oral, subcutâneo, intramuscular, tópico...
* Pasquale Cipro Neto é professor de português, colunista dos jornais Folha de S. Paulo, O Globo, Diário do Grande ABC, entre outros, idealizador e apresentador do programa Nossa Língua Portuguesa da TV Cultura e autor de várias obras ligadas à lingua portuguesa.
O sujeito sai do consultório com a receita nas mãos. Tenta entender os hieróglifos (ou "hieroglifos", tanto faz) do médico. Não obtém pleno êxito, mas pelo menos uma coisa lhe parece clara: "uso tópico", expressão que muitas vezes encabeça as recomendações do facultativo. Os mais novos talvez não saibam, mas o facultativo é o médico mesmo.
E lá vai o nosso paciente, intrigado com o "uso tópico". Que significa isso? "Tópico" vem do grego "tópos", radical que indica idéia de lugar e que aparece em alguns vocábulos de nossa língua: "topofobia" (medo mórbido de certos lugares), "topônimo" (nome de lugar - região, cidade, país etc.), "topografia" (descrição exata e minuciosa de um lugar) etc.
Pois bem, o uso é tópico porque é feito no lugar do corpo em que se manifesta o mal. Na prática, o uso tópico acaba significando "uso na pele", já que o medicamento é aplicado diretamente na pele que cobre a região do corpo em que está o mal que se quer curar. Sem saberem o que significa "uso tópico", muitas vezes é só na farmácia que os pacientes descobrem que o médico receitara uma pomada, um creme, um xampu, uma loção ou um sabonete.
Bem, voltemos ao nosso paciente, que na mesma receita encontra a prescrição de outro medicamento, agora com esta recomendação: "uso intramuscular". Aqui, nenhuma dúvida: o sujeito já sabe que vai ter de tomar uma injeção. O problema, agora, não é de compreensão; é de grafia mesmo. Não são poucos os médicos que escrevem "intramuscular" com hífen a separar o prefixo latino "intra" (que significa "dentro de", "no interior") do adjetivo "muscular". O prefixo "intra" só se agrega com hífen a palavras iniciadas por vogal, "h", "r" ou "s", como "intra-articular", "intra-uterino", "intra-ocular", "intra-hepático" etc. Nos demais casos, nada de hífen: "intramuscular", "intracartilaginoso", "intravascular", "intracraniano" etc. O correspondente grego de "intra" é "endo", que se encontra em "endocárdio", "endotraqueal", "endocrinologia" (de que faz parte o elemento grego "crino", que significa "separar", "distinguir", "discernir"), "endovenoso" etc.
A esta altura, talvez alguém esteja pensando que basta seguir o que se recomenda com "intra" para não errar mais no emprego do hífen com os outros prefixos, muitos dos quais são comuns na terminologia médica ("anti", "ultra", "auto", "semi", "inter" etc.). Não é bem assim; cada caso é um caso. Um bom exemplo é o prefixo grego "anti", que indica idéia de oposição. Com ele, só ocorre hífen se a palavra agregada começa com "h", "r", ou "s": "anti-hemorrágico", "anti-histamínico", "anti-retroviral", "anti-sifilítico", "anti-rábico". Nos demais casos, nada de hífen: "antiinflamatório" (com "ii", sem hífen), "antiinfeccioso" (também com "ii", sem hífen), "antiasmático", "antiemético", "antiepiléptico" etc.
E o nosso paciente? Está cercado de remédios por todos os lados. Acaba de constatar que o médico preencheu a frente e o verso da receita. Na última das recomendações, está presente a expressão "uso sub-cutâneo", grafada assim, com hífen. Eis outro prefixo que normalmente é atado ao radical com hifens desnecessários. "Sub" só se agrega com hífen a palavras iniciadas por "b" ou "r". Salvo engano, não há termos médicos que se enquadrem nesse caso. Nos demais, porém, não faltam exemplos, todos grafados sem hífen. Prepare-se, doutor: "submandibular", "subclavicular", "subclínico", "subcostal", "subepático" (sem "h"!), "subcapsular", "subluxação", "suboccipital", "subcutâneo", "subfebril".
Depois de tantos remédios, administrados de maneiras tão díspares, nosso caro paciente quer se curar, sem que isso se transforme em algo utópico. Utópico? Mas essa palavra nos lembra o início da receita, ou seja, o uso tópico. Santo Deus, lá vem remédio de novo? Não vem, não, embora as palavras "tópico" e "utópico" tenham tudo que ver uma com a outra. Na verdade, ao pé da letra, uma é o contrário da outra. O "u" de "utópico" nada mais é do que o prefixo negativo grego "ou", agregado pelo humanista inglês Thomas Morus ao radical grego "tópos" para criar a palavra "utopia", com a qual batizou, em 1516, uma ilha imaginária, cujo sistema sociopolítico era simplesmente o ideal. Ao pé da letra, "utopia" significa "nenhum lugar". Na prática, a utopia é o sonho, a fantasia, a realização do impossível, daquilo que não existe em nenhum lugar.
Pois é justamente por uma utopia que trabalham (ou deveriam trabalhar) os médicos e a medicina: a de uma sociedade sem doenças e sem doentes. Enquanto esse tempo utópico não chega, curamo-nos com medicamentos de uso oral, subcutâneo, intramuscular, tópico...
* Pasquale Cipro Neto é professor de português, colunista dos jornais Folha de S. Paulo, O Globo, Diário do Grande ABC, entre outros, idealizador e apresentador do programa Nossa Língua Portuguesa da TV Cultura e autor de várias obras ligadas à lingua portuguesa.
Fonte: CREMESP
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