Albert Sabin, cientista que
dispensa apresentações, descobriu a vacina que leva seu nome e que foi
aprovada pelo Serviço Público de Saúde dos Estados Unidos em 1961. Seu
produto, preparado com o vírus atenuado da pólio, poderia ser tomado
oralmente e prevenia a contração da moléstia.
Sabin renunciou aos direitos de patente da vacina que criou,
facilitando sua difusão e permitindo que crianças de todo o mundo fossem
imunizadas contra a poliomielite. Sua descoberta efetivamente eliminou a
pólio em quase todo o mundo
Não se fazem mais cientistas como Sabin. Atualmente, a corrida por
registros e patentes é uma forte marca da “inventividade humana”,
aliás, na maior parte dos casos, produzidas por cientistas-empregados
das grandes corporações de medicina, biologia e medicamentos. Onde foi
parar a humanidade da ciência?
O noticiário internacional das últimas semanas mostrou que cerca de cem oncologistas de quinze países denunciaram em um artigo[1]
os preços abusivos dos medicamentos contra o câncer necessários para
preservar a vida dos doentes, particularmente nos Estados Unidos, e
fizeram um apelo para que prevaleçam "as implicações morais".
Veja isto: Entre os doze tratamentos contra o câncer aprovados em
2012 pela agência americana que regula alimentos e medicamentos (FDA),
onze custam mais de 100.000 dólares por ano. Segundo esses médicos
especializados em leucemia, um custo desta magnitude não se justifica
moralmente porque os medicamentos, dos quais dependem os doentes para
preservar sua vida, não deveriam estar submetidos às leis do mercado.
"Quando um produto afeta a vida ou a saúde das pessoas, o preço justo
deveria prevalecer por suas implicações morais", escreveram os médicos,
dando como exemplo o preço do pão na época da fome, da vacina da
poliomielite e de tratamentos de patologias crônicas como diabetes,
hipertensão arterial ou tuberculose.
O mercado engole tudo. E, na medida em que os conservadores liberais
passaram a dominar o livre mercado e a defender que a economia deve ser
deixada a si mesma, sendo que a ciência econômica deve ser neutra, isto
é, não pode emitir juízos de valor, mas apenas descrever os fatos,
parece que algo do humano de perdeu. E, de fato, um ser humano
absolutamente “neutro”, sem uma base moral, não é “bem” um ser humano,
pois falta algo nele. Falta um mínimo de senso de solidariedade, de bom
senso, de conduta justa etc., enfim, de “humanidade”.
É de conhecimento geral a vida de um casal de historiadores que
descobriu que seu filho Lorenzo de 8 anos de idade era portador de uma
doença rara e degenerativa diagnosticada como adrenoleucodistrofia
(ALD), que provoca uma incurável degeneração do cérebro, levando o
paciente a morte em pouco tempo.
A história de Lorenzo e seus pais ficou mundialmente conhecida em função da realização do excelente filme “O óleo de Lorenzo”[2]
. O filme é uma lição de vida e a vida de Augusto e Michaela Odone – os
pais de Lorenzo – uma lição de humanidade. Haveria muito o que falar
sobre o filme (e a quem não assistiu, indico), mas vou centrar num dos
aspectos: o do mercado (ou da falta dele, no caso).
Mas, é necessário um pequeno resumo: O drama começa quando o casal
descobre que o filho Lorenzo é portador da ALD. De acordo com os
médicos, o garoto não viveria mais do que três anos. O desespero toma
conta dos pais e afeta fortemente Michaela, pois Lorenzo, além de ser
seu único filho, herdara a patogenidade dela, eis que a ALD transmite-se
exclusivamente de mãe para filho (somente do sexo masculino) devido a
uma disfunção genética relacionada com o cromossomo sexual X. Apenas as
mulheres são portadoras, havendo 50% de chances de transmitirem a doença
para o filho.
Augusto e Michaela acabam por se envolver com os membros de uma ONG
de pais com filhos portadores de ALD, porém constatam que esses pais se
preocupavam principalmente em aceitar a doença, buscando somente a
conformidade e não a cura.
Inconformado com essa situação, Augusto, o pai, resolve dedicar sua
vida para descobrir os fatores determinantes da doença. E, numa
verdadeira epopeia, ele e Michaela acabam por descobrir um problema com a
dieta dos doentes: utilizando um óleo especial de oliva, Lorenzo
conseguiu, apesar de não ter voltado ao estado normal de saúde, barrar a
doença, com melhoras significativas (Lorenzo Odone morreu aos 30 anos,
em 30 de maio de 2008, um dia depois de fazer trinta anos, por causa de
uma pneumonia. Ele viveu 20 anos a mais do que os médicos previram).
Augusto Odone teve o reconhecimento dos seus estudos pela comunidade médica e acadêmica americanas: o título de Doutor honoris causa por sua imensa contribuição à ciência e à medicina.
Eis a atuação do mercado: Os Odone haviam resolvido organizar um
simpósio para ouvir cientistas e, juntando esforços, buscar uma saída
para o problema. Daí, surgiram as questões mercadológicas. O médico que
era o pesquisador que tinha desenvolvido um modelo da dieta (que não
estava dando certo) disse que os custos para um evento daquele porte
eram altíssimos e que eles não conseguiriam angariar fundos para tanto.
Mas, o principal: não havia interesse naquela doença, pois ela não
tinha uma grande prevalência no mundo. O número de doentes era
insuficiente para motivar e sustentar investimentos para a pesquisa. (Os
Odone não desistiram e conseguiram realizar o Simpósio, gastando o
dinheiro que tinham e recebendo doações de amigos e colegas de
trabalho).
Eis o ponto: a história dos Odone mostra como age o mercado de
pesquisa: é a quantidade de doentes que importa. Se uma doença atingir
apenas alguns poucos (ainda que milhares na correlação com os gastos
necessários para a pesquisa), certamente estarão fadados a permanecerem
doentes e abandonados a própria sorte pelo mercado. A base do mercado
não é mesmo ética!
É por essas e outras que cada, vez mais, os Governos têm intervindo
no mercado de medicamentos, quebrando patentes. Já que o mercado não tem
base moral, a política, que deve se sustentar nela e também nos
sistemas legais justos e protetores da dignidade da pessoa humana, deve
bloquear os abusos.
Fiquemos com o exemplo brasileiro: A Presidenta Dilma Rousseff
prorrogou, por mais cinco anos, a quebra de patente do medicamento
Efavirenz, usado no combate ao vírus HIV. A decisão foi publicada no
"Diário Oficial da União" de 5-5-2012. Cinco anos antes, o Presidente
Lula decidiu pela quebra de patente do remédio, produzido pelo
laboratório norte-americano Merck Sharp & Dohme. A publicação do
decreto diz: "Fica prorrogado, por cinco anos, o prazo de vigência do
licenciamento compulsório das patentes no 1100250-6 e 9608839-7,
referentes ao Efavirenz para fins de uso público não comercial".
Em 2007, o governo brasileiro comprava o Efavirenz a US$ 1,59 do
laboratório norte-americano, detentor da patente. Com a decisão da
quebra, passou a pagar US$ 0,44 de um laboratório da Índia. Foi a
primeira vez que o Brasil recorreu à medida, prevista no Acordo de
Propriedade Industrial (Trips) da Organização Mundial do Comércio (OMC).
Em 2008, o medicamento começou a ser produzido no Brasil, na
apresentação 600 mg, por meio do Instituto de Tecnologia em Fármacos da
Fundação Oswaldo Cruz (Farmanguinhos), que é ligado ao governo. Desde
2011, a produção supre toda a necessidade nacional do Efavirenz 600 mg.
Cerca de 103 mil pessoas usam o medicamento regularmente.
O governo, no entanto, continuou pagando 1,5% de royalties ao Merck
Sharp & Dohme. O remédio é repassado gratuitamente aos pacientes com
Aids por meio do Sistema Único de Saúde (SUS).
Recentemente, no dia 1º de abril. p.p., a Suprema Corte da Índia
negou o pedido da farmacêutica multinacional suíça Novartis para ter
direito à patente do medicamento anticancerígeno mesilato de imatinib,
comercializado com o nome Glivec. A decisão favorece os fabricantes
indianos de genéricos, cujas versões do remédio custam menos de 10% da
original vendida pelo laboratório suíço.
O Tribunal indiano rejeitou a patente da Novartis ao considerar que o
medicamento é uma leve modificação de um produto anterior, embora com
propriedades que não mudaram, explicou o advogado Anand Grover,
integrante da equipe de defesa da Associação de Ajuda aos Pacientes com
Câncer. Assim, a Novartis não teria direito à patente da droga, pois
esta não seria um medicamento novo.
O advogado elogiou o Tribunal, ressaltando que a sentença "dá razão
aos direitos dos pobres da Índia" e também beneficia os pacientes do
mundo em desenvolvimento, pois o fármaco da Novartis custa 2.600 dólares
por paciente ao mês, enquanto as versões genéricas possuem custo mensal
de até no máximo 175 dólares.
Para as grandes companhias farmacêuticas, no entanto, a sentença da
corte indiana pode desestimular os investimentos em pesquisa e inovação
nos principais laboratórios do setor.
A disputa judicial entre a Novartis e os fabricantes de genéricos da
Índia começou há sete anos, quando a companhia farmacêutica ingressou
com um pedido de patente para uma nova versão do Glivec. O governo
indiano negou a solicitação, baseado em uma lei que impede a aquisição
de patentes a partir de pequenas mudanças em medicamentos já existentes.
Desde então, a Novartis buscava contestar a medida na Justiça. Pelas
leis internacionais, companhias com direito à patente têm 20 anos de
exclusividade na comercialização do produto. Após esse prazo, a empresa
que primeiro quebra a patente pode vender o medicamento por 180 dias.
Decorrido esse período, a produção fica liberada a outros fabricantes.
O mercado de genéricos da Índia é um dos maiores do mundo e seus
laboratórios foram pioneiros na quebra de patentes de medicamentos,
política que inclusive serviu de modelo para o Brasil.
Por fim, respondendo, à pergunta do título deste artigo, digo que,
tudo indica, não há base moral no mercado de medicamentos em geral.
Apesar das indústrias do setor, aparentemente, preocuparem-se com os
seres humanos, o que se percebe é que o que as impulsiona é o lucro
(sempre ele) independentemente do bem estar que seus produtos podem (ou
melhor, devem) propiciar. Olhando o setor, se veem doentes abandonados,
prática de preços abusivos e outras mazelas numa grande cadeia de
abusos.
Fonte: Terra Magazine
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