"Preciso de um aborto". Das muitas palavras que uma mulher com gravidez indesejada poderia
buscar na internet, essa frase simples e direta é que pode levá-la a uma resposta que desafia a lei brasileira.
Aparecendo como primeiro resultado da
busca, o
Women on Web é um site que se dispõe a enviar os remédios necessários a uma interrupção medicinal da gravidez para mulheres de qualquer país onde o
acesso ao aborto seja limitado ou proibido. E o governo brasileiro nada pode fazer para impedir.
O site é um projeto de uma ONG holandesa, a Women on Waves, que garante não lucrar com a distribuição de coquetéis abortivos. Mesmo assim é necessário fazer, se possível, uma doação de 70 euros ao realizar o pedido.
Caso a mulher possua baixa renda, é possível entrar contato com os administradores do projeto. Mas o site deixa claro: eles apenas tentarão encontrar alguém que possa doar parte do dinheiro para ajudar, pois será sempre necessário que exista essa contribuição.
Além da doação, a mulher precisa fazer uma consulta online, em que deverá responder um questionário de 25 perguntas. Nele, é preciso garantir estar com até nove semanas de gravidez e livre de qualquer doença grave.
Para as brasileiras, é preciso ter até sete semanas de gravidez, pois, como o remédio é enviado por correio registrado, pode demorar até duas semanas para chegar.
“As mulheres são muito capazes de determinar o estágio da gravidez em que estão. E mesmo se o aborto for realizado em estágios mais avançados de gravidez, apenas 5,2% das mulheres precisam de intervenção cirúrgica”, garante a idealizadora do
Women on Web, Rebecca Gomperts
Não é preciso, então, enviar nenhum comprovante ou ultra-sonografia. A mulher que recorre ao
Women on Web assina um termo de compromisso: ela é responsável por qualquer complicação durante o procedimento de aborto medicinal.
“Se ela não tem outros meios legais, é melhor que recorra ao aborto medicinal que a outros métodos mais perigosos, como a ingestão de alvejante e a inserção de objetos pontiagudos no canal vaginal”, defende Rebecca. “O que propomos é um modelo de redução de riscos.”
E, de fato, a pílula abortiva é considerada o procedimento mais seguro por especialistas.
De acordo o médico Cristião Rosas, essa falta de acompanhamento observada no caso do
Women on Web é apenas uma realidade da clandestinidade, que, “sim, traz riscos, mas é melhor que esses outros métodos utilizados por aí”.
“O problema real é uma legislação que não atende a uma demanda real”, diz Rosas, que é secretário da Comissão de Violência Sexual e Interrupção da Gravidez da Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia).
As pílulas do aborto
O coquetel oferecido pelo site traz um comprimido de Mifepristona e seis de Misoprostol, combinação que, segundo Rebecca e Rosas, tem 98% de eficácia. Enquanto a Mifepristona induz à morte do feto, o Misoprostol provoca contrações e amolecimento do útero, facilitando a interrupção da gravidez.
O problema é que, além de o aborto no Brasil só ser legalizado em raras circunstâncias (estupro e risco de morte para a mãe), também existem fortes restrições em relação ao uso e a comercialização dessas substâncias.
O Misoprostol era conhecido no Brasil pelo nome de Cytotec, remédio utilizado para tratar úlceras. O Cytotec teve vendas massivas no Brasil durante as décadas de 80 e 90, por conta do efeito colateral abortivo associado ao Misoprostol.
Para tentar conter o uso para fins de aborto, o Ministério da Saúde foi restringindo o acesso ao Cytotec e depois ao Misoprostol especificamente. Hoje em dia a substância só pode ser utilizada em hospitais credenciados, não podendo ser comercializada de nenhuma maneira.
A Mifepristona é ainda mais restrita, já que não tem regulamentação da Anvisa, o que significa que, ao contrário do Misoprostol, seu uso não é permitido em nenhuma circunstância.
"Ambos os medicamentos estão na lista de substâncias essenciais à saúde de acordo com a OMS", defende Rebecca.
De fato, o Misoprostol e a Mifepristona são considerados pela organização requisitos de um sistema de saúde básico. A OMS, no entanto, não deixa de fazer uma observação: "onde forem permitidos pela lei nacional e aceitos culturalmente". A informação, no entanto, não foi mencionada durante a conversa com a representante da
Women on Web.
Longe e Fora da lei
“Que eu saiba, não temos problemas legais com o governo brasileiro. O que o
Women on Web faz é ajudar as mulheres a chegarem ao que a OMS define como saúde”, defende a idealizadora do projeto, Rebecca Gomperts.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), “saúde é um estado de bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença ou enfermidade". E, para o
Women on Web, o direito ao aborto se inclui nessa definição.
Agindo em defesa de um ideal ou não, entretanto, os responsáveis pelo site poderiam, sim, enfrentar contratempos legais no Brasil, que incluem uma pena de 10 a 15 anos no caso de distribuição de medicamentos sem o devido registro da Anvisa.
Mas, segundo explica o advogado penalista João Daniel Rassi, os responsáveis pelo site precisariam estar em território nacional para que pudessem ser punidos.
“Enquanto essa ONG funcionar na Holanda, a lei brasileira não poderá atingi-la”, afirma o advogado.
Isso acontece porque os medicamentos que, no Brasil, são de uso controlado, na Holanda são permitidos. Se não há crime lá, o Brasil não pode pedir que os responsáveis sejam extraditados, tornando necessário que o site agisse em território brasileiro para que pudesse ser efetivamente punido.
Na Holanda, o aborto não é crime, o que amarra ainda mais a ação do governo brasileiro. Por interromper a gravidez, apenas a brasileira que venha tomar as pílulas enviadas pelo
Women on Web poderia ser penalizada, com um a três anos de prisão.
Apenas pedir esses remédios, entretanto, não traz, em um primeiro momento, problemas legais. A delegada Eliana Yamasaki, da Delegacia de Repressão a Crimes Fazendários (Delefaz) explica que a mesma lei que poderia punir o
Women on Web tem uma espécie de "buraco" quando se trata da mulher que recebe o coquetel abortivo.
“Nosso Código Penal não fala em uso pessoal. Para que essa mulher fosse alvo de investigação, então, seria preciso que ficasse comprovado que ela importou esses medicamentos para venda ou distribuição”, esclarece a delegada.
"Preciso de um aborto". Enquanto as mulheres que recorrem ao
Women on Web se encaixarem nessa simples frase, é difícil que alguém as impeça.
Apuração: Maria Eduarda Ornellas
fonte: http://www.jb.com.br/ciencia-e-tecnologia/noticias/2011/09/16/brecha-nas-leis-brasileiras-abre-as-portas-para-o-aborto-pela-internet/
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