quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

A relação espúria entre médicos e farmacêuticas

Publicado em: 09/02/2011 14:14
O tema é explosivo, incomoda a poderosa indústria da saúde, faz uma porcentagem não desprezível de médicos sair de sua zona de conforto mas é absolutamente imperioso abordá-lo sempre que possível. Ele pode ser resumido numa frase que explicita uma constatação óbvia: profissionais de saúde fazem, de há muito e cada vez mais, o jogo dos laboratórios. Uma relação que, em alguns casos, pode até ser considerada legal, mas quase sempre ética e moralmente condenável.

Comecemos por uma reportagem contundente, recentíssima (03/02/2011, p.C14), assinada pela competente e corajosa Claúdia Collucci, repórter da Folha de S. Paulo, com o título Médicos ligados à indústria ditam regras de conduta. Nela, a jornalista, após pesquisar as diretrizes clínicas associadas a determinadas doenças (hipertensão, obesidade, hepatites B e C, diabetes, disfunção erética etc), denuncia: " a maioria dos médicos que as fizeram têm conflitos de interesse". Como assim? Leiamos o que escreveu Cláudia Collucci: "Dos 110 profissionais que fizeram o documento sobre hipertensão, 63 (57%) declararam que fizeram estudos, receberam ajuda, deram palestras ou escreveram textos científicos patrocinados por laboratórios. Dois deles têm também ações da indústria. A situação se repete nos outros casos e chega a ser dramático para a disfunção erétil porque todos os 5 médicos que ditam as regras confessam conflitos de interesse.

Aí está uma das situações que, embora não seja considerada ilegal (esta é a posição do Conselho Federal de Medicina - CFM) porque não há restrições a esta prática, joga um véu enorme de suspeição sobre a legitimidade das avaliações. Está certo, alguém (e a reportagem traz essas vozes) vai insistir que tudo se baseia em evidências científicas, que há uma isenção total, mas, pera aí, ninguém é bobo, sobretudo quem conhece a trajetória de muitos laboratórios. 

Ás vezes, é difícil encontrar, por aqui, pessoas corajosas para colocar o dedo na ferida, mas especialistas estrangeiros são menos coniventes e não "apalpam". Este é o caso da médica Adriane Fugh-Berman, professor da Georgetow University Medical Center, em Washington, que, ouvida para a mesma reportagem,  repete com todas as letras: " Os conflitos (de interesse) garantem que as metas do marketing das farmacêuticas sejam cumpridas. Os médios pagos pela indústria representam o interesse da indústria, estejam eles conscientes  disso ou não. Podem exagerar na prevalência ou na importância das doenças, minimizar os problemas de segurança e não dar importância a terapias não-farmacológicas, como dieta e exercícios". Uma outra especialista, reconhecida como uma das mais pessoas mais influentes nos EUA, Marcia Angell, que tem um livro publicado no Brasil - A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos - também não "alisa", ela que é médica, professora em Harvard, e já foi editora de uma das mais importantes publicações científicas na área médica. Declara sem pestanejar no capítulo 7 do seu livro que tem o título sugestivo - Venda agressiva ... chamarizes, subornos e propinas - que o grande alvo (ela fala em armação) dos laboratório são os médicos e cita estratégias como as amostras grátis (que são grátis coisa alguma!), os presentes (alguns caríssimos), as viagens patrocinadas (nem sempre para participação mesmo em congressos) e por aí vai.

Uma outra reportagem (1º junho de 2010), também da Folha  e também assinada pela diligente Cláudia Collucci, com o título  Médicos 'loteiam' eventos para indústria de remédios", evidencia a relação entre farmacêuticas e profissionais de saúde com o marketing sempre se sobrepondo ao científico.  Todos os que acompanham a área médica já sabem: algumas entidades profissionais ou mesmo científicas chegam a assinar conjuntamente com os laboratórios as campanhas publicitárias, avalizando medicamentos de todo o tipo. É a chamada "farra do boi" e fica difícil para os cidadãos imaginarem a quem recorrer quando são prejudicados (você já notou quantos remédios são tirados de circulação ou estão sob suspeita, mesmo com a aprovação da FDA, órgão maior de fiscalização dos EUA?). O terreno é contaminadíssimo e até a OMS - Organização Mundial de Saúde, no episódio recente da gripe suína, foi acusada de favorecer os produtores de vacinas que ganharam uma grana, com o pânico que se instalou planetariamente por culpa de governos, entidades e da própria mídia sensacionalista.

As denúncias de relação espúria entre médicos e laboratórios multiplicam-se por toda parte e podemos resgatar com facilidade este material nos meios de comunicação mais críticos e no Google. Reportagem publicada pelo jornal O Globo em 20/08/2009, sob o título Ligações perigosas, assinada por Natasha Singer, do New York Times, tinha como lead: "surgem novas evidências de que integrantes de algumas das principais faculdades de medicina nos Estados Unidos estão emprestando o nome e a reputação para trabalhos científicos escritos por ghostwriters (escritores fantasmas) a serviço da indústria farmacêutica. Artigos que são cuidadosamente preparados para ajudar na aprovação e na venda de remédios". 

Uma outra nota, também publicada na Folha (22/10/2010), traz no parágrafo inicial uma denúncia alarmante: "alguns médicos estão pedindo transfusões de sangue desnecessárias e até perigosas para pacientes com câncer, para encaixá-los em testes clínicos de novos medicamentos." Você imagina quem está por trás desta postura nefasta, não é verdade?  Voltemos de novo à Folha, em outra reportagem publicada no dia 2/10/2010, com o título Indústria é acusada de criar doença para vender remédio, que não poupa laboratórios que, segundo análise publicada no British Medical Journal, "teriam financiado pesquisas para transformar falta de desejo em doença. Objetivo: vender remédios." É lógico que as empresas negam o fato mas, quando se trata da indústria da saúde, é melhor a gente colocar as barbas de molho.  Se você tiver ter acesso ao livro Crimes Corporativos, de Russel Mokhiber, editado há um bom tempo pela Scritta e já esgotado, verá que os laboratórios e as montadoras são, de longe, os maiores vilões quando o assunto é deslize ético e afronta ao interesse público.

As farmacêuticas sustentam um batalhão de representantes comerciais e eles peregrinam pelos consultórios e clínicas fazendo, com competência, a divulgação dos novos produtos. Até aí nada contra os colegas que estão cumprindo o seu papel. Mas pesquisas mostram que muitos médicos, que não se atualizam adequadamente, muitas vezes se baseiam no que essa literatura comercial e esse discurso propagandístico gritam nos seus olhos e ouvidos. E você (eu já vi) pode presenciar quando está em um consultório a festa que muitos médicos fazem para os representantes na sala de espera (pode imaginar o que acontece entre 4 paredes, né?), muitas vezes ignorando a presença dos próprios clientes.

A ética médica não é disciplina de destaque nos cursos de Medicina e é preciso reconhecer (as próprias entidades da área da saúde fazem isso) que há muitos deles que não preparam para coisa alguma. Mas ninguém ignora que os laboratórios freqüentam os corredores de faculdades e universidades e que, desde o momento da formação dos futuros médicos, já tentam seduzi-los para marcas e produtos.

Certamente, essa situação esdrúxula, nociva, permanece porque ninguém tem coragem de colocar o guiso no gato e muitos jamais o fariam porque lucram bastante com essa relação conflituosa.

Mas é preciso denunciar, fazer como a corajosa Cláudia Collucci e alguns especialistas têm feito: botar a boca no trombone, defendendo o interesse público contra a ganância de determinadas corporações. É necessário chamar os governos às falas, mas eles também (vide no Brasil) têm sido objeto de pressões insuportáveis das farmacêuticas que pressionam para incluir seus remédios caros no SUS e estão por trás de processos na Justiça para a distribuição gratuita de medicamentos no serviço público.

A relação médicos x laboratórios, ao que parece, é doentia, mas tem uma singularidade: os penalizados são sempre os cidadãos que têm pouca chance de se defenderem de ações predadoras, lesivas à sua saúde.

Continuemos alertas, exigindo providências. E que elas sejam urgentes porque este marketing nefasto, não ético, esta cumplicidade odiosa compromete a nossa qualidade de vida.

 Em tempo 1: há certamente exceções entre as farmacêuticas, mas há provas suficientes para condenar, sem trégua, inúmeros laboratórios inescrupulosos, ainda que, pela ação tímida da Justiça e lobbies poderosos, os grandes interesses comerciais continuam sendo privilegiados. Você sabia (os dados são da ANVISA de quem os laboratórios não  gostam nadinha porque ela tem colocado o dedo na ferida) que boa parte da publicidade de remédios afronta a legislação? Pois é, desconfie da propaganda de remédios porque ela é em geral enganosa. E, como já viu, se persistirem os sintomas, talvez não valha a pena consultar o seu médico (se ele estiver comprometido, é claro!).

Em tempo 2: embora existam profissionais de saúde que fazem acintosamente o jogo das farmacêuticas, não é possível generalizar levianamente porque há milhares de médicos idealistas, pesquisadores independentes e éticos que não se prestam a práticas como as aqui relatadas. Pelo contrário, geralmente são médicos que denunciam estes esquemas todos. Profissionais que muitas vezes recebem salários aviltantes, que correm de emprego pra emprego para sustentar a família ou a si próprios, virando plantões e plantões sem fim. Você sabia que os médicos são os profissionais que mais sofrem infarto, depressão e que há um número considerável deles que, em virtude do estresse da profissão, é seduzido pelo mundo das drogas (não necessariamente cocaína ou algo similar) e têm sua vida destruída?

Em tempo 3: A mídia brasileira, com raras exceções, publica, sem questionamento, releases da indústria da saúde e contribui decisivamente para estimular nas pessoas a prática nociva da automedicação. Esta na hora de os jornalistas abrirem o olho, cumprirem sua função pública e repudiarem esta publicidade quando mentirosa. Precisamos de mais "Cláudias Colluccis" e de menos "laranjas" a serviço de interesses excusos. 
 
fonte: http://portalimprensa.uol.com.br/colunistas/colunas/2011/02/09/imprensa834.shtml

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